Bico-de-pena do Dicionário Literário Brasileiro, de Raimundo de Menezes, publicado em Veja Santos
Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecervos
Fora demais, não o fiz.
Tudo se arranca do seio,
— Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.
Roseira cheia de rosas,
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:
Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
— Com te perder e ganhar-me,
Se ganhei, ou se perdi...
Vicente de Carvalho
Vicente de Carvalho e família, em São Paulo (1912):
1 - Mercedes; 2 - Maria Conceição (Ceição); 3 - Ermelinda (Dinda); 4 - Adelaide (Lalaide);
5 - José Higino (Major); 6 - Ermelinda (Biloca); 7 - Arnaldo; 8 - Maria Augusta (Malala);
9 - Augusto (Tareco); 10 - Paulo; 11 - Vicente de Carvalho; 12 - Benedito Arnaldo (Mimi);
13 - Francisco (Chico); 14 - Vicentina (Botão); 15 - Maria da Piedade (Dadinha).
Foto: Poliantéia Santista/História de Santos, publicada com o texto
Vicente Augusto de Carvalho (Santos, 5 de abril de 1866 — Santos, 22 de abril de 1924) foi um advogado, jornalista, político, deputado, magistrado, poeta e contista brasileiroEra filho do major Higino José Botelho de Carvalho e de Augusta Carolina Bueno, descendente de Amador Bueno, o Anunciado.
Formou-se em 8 de novembro de 1886, com 20 anos, da Faculdade de Direito de São Paulo, no curso de Ciências Jurídicas e Sociais. Foi advogado, juiz e ministro do Tribunal de Apelação do Estado de São Paulo.
Serviu como redator das revistas Idéia e República. Tendo publicado verso, estreou na prosa numa polêmica com o poeta Dias da Rocha.
Em 1885 publicou seu primeiro livro Ardentias. Três anos depois veio Relicário (1888). Quando voltou a Santos, fervia o movimento abolicionista. Após contribuir para várias publicações fundou o Diário da Manhã. Em 1902 publicou o Rosa, rosa de amor.
Foi membro do movimento parnasianista e seu grande tema era o mar, ao ponto de receber a alcunha de Poeta do Mar.
A obra que marcou sua carreira poética, Poemas e Canções, foi primeiro publicada em 1909 com prefácio de seu amigo Euclides da Cunha. Teve dezessete edições.
Casou-se em 1888 com Ermelinda Ferreira de Mesquita, em Santos, com quem teve quinze filhos, entre os quais:
1- Mercedes;
2 - Maria da Conceição (Ceição);
3 - Ermelinda (Dinda);
4 - Adelaide (Lalaide);
5 - José Higino (Major);
6 - Ermelinda (Biloca);
7 - Arnaldo;
8 - Maria Augusta (Malala);
9 - Augusto (Tareco);
10 - Paulo;
11 - Benedito Arnaldo (Mimi);
12 - Francisco (Chico);
13 - Vicentina (Botão);
14 - Maria da Piedade (Dadinha).
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- Os jardins da orla de Santos se devem em parte a Vicente de Carvalho. Em 1921 escreveu, junto a Américo Martins dos Santos e Benedicto Montenegro, uma Carta Aberta ao Presidente da República contra apropriações ilegais das áreas em frente à praia.
- A poetisa santista Maria José Aranha de Rezende (Santos, 02/10/1911 - Santos, 17/06/1999) foi sua sobrinha-neta e pertenceu à Academia Santista de Letras.
- Além de um distrito da cidade do Guarujá, um bairro e uma estação do metrô na cidade do Rio de Janeiro, ruas em Santos, em São Bernardo do Campo, em Santo André, em Porto Alegre e em Curitiba possuem seu nome.
- Muitos de seus poemas foram traduzidos para o Italiano por Giusepina Stefani
Obras
- Ardentias 1885
- Relicário 1888
- Rosa, rosa de amor 1902
- Poemas e canções 1908
- Versos da mocidade 1909
- Verso e prosa, incluindo o conto "Selvagem" 1909
- Páginas soltas 1911
- A voz dos sinos 1916
- Luisinha, contos 1924
Academia Brasileira de Letras
Vicente de Carvalho
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Iluminado soneto de Vicente de Carvalho! Velho Tema I Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos. Velho Tema II Eu cantarei de amor tão fortemente Com tal celeuma e com tamanhos brados Que afinal teus ouvidos, dominados, Hão de à força escutar quanto eu sustente. Quero que meu amor se te apresente - Não andrajoso e mendigando agrados, Mas tal como é: risonho e sem cuidados, Muito de altivo, um tanto de insolente. Nem ele mais a desejar se atreve Do que merece: eu te amo, o meu desejo Apenas cobra um bem que se me deve. Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo; E vou de olhos enxutos e alma leve À galharda conquista do te beijo. Velho Tema III Belas, airosas, pálidas, altivas, Como tu mesma, outras mulheres vejo: São rainhas, e segue-as num cortejo Extensa multidão de almas cativas. Tem a alvura do mármore; lascivas Formas; os lábios feitos para o beijo; E indiferente e desdenhoso as vejo Belas, airosas, pálidas, altivas... Por quê? Porque lhes falta a todas elas, Mesmo às que são mais puras e mais belas, Um detalhe sutil, um quase nada: Falta-lhes a paixão que em mim te exalta, E entre os encantos de que brilham, falta O vago encanto da mulher armada. Velho Tema IV Eu não espero o bem que mais desejo: Sou condenado, e disso convencido; Vossas palavras, com que sou punido, São penas verdades de sobejo. O que dizeis é mal muito sabido, Pois nem se esconde nem procura ensejo, E anda à vista naquilo que mais vejo: Em vosso olhar, severo ou distraído. Tudo quanto afirmais eu mesmo alego: Ao meu amor desamparado e triste Toda a esperança de alcançar-vos nego. Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste; Conto-lhe o mal que vejo, e ele que é cego Põe-se a sonhar o bem que não existe. Velho Tema V "Alma serena e casta, que eu persigo Com o meu sonho de amo e de pecado, Abençoado seja, abençoado O rigor que te salva e é meu castigo. Assim desvies sempre do meu lado Os teus olhos; nem ouças o que eu digo; E assim possa morrer, morrer comigo, Este amor criminoso e condenado. Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito Uma ventura obtida com teu dano, Bem meu que de teus males fosse feito." Assim penso, assim quero, assim me engano... Como se não sentisse que em meu peito Pulsa o covarde coração humano. Vicente de Carvalho Dona Flor Ela é tão meiga! Em seu olhar medroso Vago como os crepúsculos do estio, Treme a ternura, como sobre um rio Treme a sombra de um bosque silencioso. Quando, nas alvoradas da alegria, A sua boca úmida floresce, Naquele rosto angelical parece Que é primavera, e que amanhece o dia. Um rosto de anjo, límpido, radiante... Mas, ai! sob êsse angélico semblante Mora e se esconde uma alma de mulher Que a rir-se esfolha os sonhos de que vivo - Como atirando ao vento fugitivo As folhas sem valor de um malmequer... Vicente de Carvalho Esperança Só a leve esperança em toda a vida disfarça a pena de viver, mais nada; nem é mais a existência resumida que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, sonho que a traz ansiosa e embevecida, é uma hora feliz, sempre adiada e que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos árvore milagrosa que sonhamos toda arriada de dourados pomos existe sim; mas nós não n´a encontramos, porque está sempre apenas onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos. Vicente de Carvalho Spleen Fora, na vasta noute, um vento de procela Erra, aos saltos, uivando, em rajadas e em fúria; E num rumor de choro, uma voz de lamúria, Ouço a chuva a escorrer nos vidros da janela. No desconforto do meu quarto de estudante, Velo. Sinto-me como insulado da vida. Eu imagino a morte assim, aborrecida Solidão numa sombra infinita e constante... Tu, que és forte, rebrame em fúria, natureza! Eu, caído num fundo abismo de tristeza, Invejo-te a expansão livre do temporal; E, no tédio feroz que me assalta e me toma, Sinto ansiarem-me n'alma instintos de chacal... E compreendo Nero incendiando Roma. Vicente de Carvalho A FLOR E A FONTE "Deixa-me, fonte!" Dizia A flor, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor. "Deixa-me, deixa-me, fonte! " Dizia a flor a chorar: "Eu fui nascida no monte... "Não me leves para o mar". E a fonte, rápida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flor. "Ai, balanços do meu galho, "Balanços do berço meu; "Ai, claras gotas de orvalho "Caídas do azul do céu!... Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte, sonora e fria Rolava levando a flor. "Adeus, sombra das ramadas, "Cantigas do rouxinol; "Ai, festa das madrugadas, "Doçuras do pôr do sol; "Carícia das brisas leves "Que abrem rasgões de luar... "Fonte, fonte, não me leves, "Não me leves para o mar!... " As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor... PALAVRAS AO MAR Mar, belo mar selvagem Das nossas praias solitárias! Tigre A que as brisas da terra o sono embalam, A que o vento do largo eriça o pêlo! Junto da espuma com que as praias bordas, Pelo marulho acalentada, à sombra Das palmeiras que arfando se debruçam Na beirada das ondas - a minha alma Abriu-se para a vida como se abre A flor da murta para o sol do estio. Quando eu nasci, raiava O claro mês das garças forasteiras: Abril, sorrindo em flor pelos outeiros, Nadando em luz na oscilação das ondas, Desenrolava a primavera de ouro; E as leves garças, como olhas soltas Num leve sopro de aura dispersadas, Vinham do azul do céu turbilhonando Pousar o vôo à tona das espumas... É o tempo em que adormeces Ao sol que abrasa: a cólera espumante, Que estoura e brame sacudindo os ares, Não os saco de mais, nem brame e estoura; Apenas se ouve, tímido e plangente, O teu murmúrio; e pelo alvor das praias, Langue, numa carícia de amoroso, As largas ondas marulhando estendes... Ah! vem daí por certo A voz que escuto em mim, trêmula e triste, Este marulho que me canta na alma, E que a alma jorra desmaiado em versos; De ti, de tu unicamente, aquela Canção de amor sentida e murmurante Que eu vim cantando, sem saber se a ouvia, Pela manhã de sol dos meus vinte anos. O velho condenado,ao cárcere das rochas que te cingem! Em vão levantas para o céu distante Os borrifos das ondas desgrenhadas. Debalde! O céu, cheio de sol se é dia, Palpitante de estrelas quando é noite, Paira, longínquo e indiferente, acima Da tua solidão, dos teus clamores... Condenado e insubmisso Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo Uma alma sobre a qual o céu resplende - Longínquo céu - de um esplendor distante. Debalde, o mar que em ondas te arrepelas, Meu tumultuoso coração revolto Levanta para o céu como borrifos, Toda a poeira de ouro dos meus sonhos. Sei que a ventura existe, Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa. Como dentro da noite amortalhado Vês longe o claro bando das estrelas; Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas Da alma entreabrindo, subo por instantes... O mar! A minha vida é como as praias, E o sonho morre como as ondas voltam! Mar, belo mar selvagem Das nossas praias solitárias! Tigre de que as brisas da terra o sono embalam, A que o vento do largo eriça o pêlo! Ouço-te às vezes revoltado e brusco, Escondido, fantástico, atirando Pela sombra das noites sem estrelas A blasfêmia colérica das ondas... Também eu ergo às vezes Imprecações, clamores e blasfêmias Contra essa mão desconhecida e vaga Que traçou meu destino... Crime absurdo O crime de nascer! Foi o meu crime. E eu expio-o vivendo, devorado Por esta angústia do meu sonho inútil. Maldita a vida que promete e falta, Que mostra o céu prendendo-nos à terra, E, dando as asas, não permite o vôo! Ah! cavassem-te embora O túmulo em que vives - entre as mesmas Rochas nuas que os flancos te espedaçam, Entre as nuas areias que te cingem... Mas fosses morto, morto para o sonho, Morto para o desejo de ar e espaço, E não pairasse, como um bem ausente, Todo o infinito em cima de teu túmulo! Fosse tu como um lago, Como um lago perdido entre as montanhas: Por só paisagem - áridas escarpas, Uma nesga de céu como horizonte... E nada mais! Nem visses nem sentisses Aberto sobre ti de lado a lado Todo o universo deslumbrante - perto Do teu desejo e além do teu alcance! Nem visses nem sentisses A tua solidão, sentindo e vendo A larga terra engalanada em pompas Que te provocam para repelir-te; Nem buscando a ventura que arfa em roda, A onda elevasses para a ver tombando, - Beijo que se desfaz sem ter vivido, Triste flor que já brota desfolhada... Mar, belo mar selvagem! O olhar que te olha só te vê rolando A esmeralda das ondas, debruada Da leve fímbria de irisada espuma... Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho Um coração chagado de desejos Latejando, batendo, restrugindo Pelos fundos abismos do teu peito. Ah, se o olhar descobrisse Quanto esse lençol de águas e de espumas Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens Apiedada entendera os teus rugidos, Os teus gritos de cólera insubmissa, Os bramidos de angústia e de revolta De tanto brilho condenado à sombra, De tanta vida condenada à morte! Ninguém entenda, embora, Esse vago clamor, marulho ou versos, Que sai da tua solidão nas praias, Que sai da minha solidão na vida... Que importa? Vibre no ar, acode os ecos E embale-nos a nós que o murmuramos... Versos, marulho! Amargos confidentes Do mesmo sonho que sonhamos ambos! NO TEU ANIVERSÁRIO No lar cercam-te vozes d´alegria em bando, em nuvens doiro, mariposas que o teu olhar atrai. Canções e rosas sob os teus pés desfolham-se à porfia. A noite, alva corbelha de mimosas sobre ti volta o arcanjo da poesia. Nublam-te o sono as ondas vaporosas do turib´lo do amor, como de dia. Vives feliz no angélico ambiente de fortuna, feliz. Mas considera, que em um pobre, misérrimo, eu doente, eu vibraria a lira, se pudera vibrar a lira frágil e inocente a bruta e hedionda garra duma fera. De Vicente de Carvalho POEMAS E CANÇÕES (SEGUNDA EDIÇÃO) Porto: Livraria Chardon, 1909 250 p. 18 cmx 12 cm. (Conservamos a ortografia antiga, original) CAIR DAS FOLHAS “Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor. “Deixa-me, deixa-me, fonte!”” Dizia a flor a chorar: “Eu fui nascida no monte... “Não me leves para o mar”. E a fonte, rapida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flôr. “Ai, balanços do meu galho, “Balanços do berço meu; “Ai, claras gotas de orvalho “Caídas do azul do céu!...” Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte sonora e fria, Rolava, levando a flor. “Adeus, sombra das ramadas, “Cantigas do rouxinol; “Ai, festa das madrugadas, “Doçuras do pôr do sol; “Caricia das brizas leves “Que abrem rasgões de luar... “Fonte, fonte, não me leves, “Não me leves para o mar!...” * As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor... Resenha publicada em ” A Tribuna”, de Santos, de forma ligeiramente condensada em 10 de maio de 2008 Poemas e Canções alcança o centenário agora em 2008 como obra difícil de encontrar: para conhecer a produção de Vicente de Carvalho (1866-1924), o leitor comum tem como opção acessível a seleção feita por Cláudio Murilo Leal para a Global, onde, entre versos ligeiros e “graciosos”, metrificados com uma “naturalidade” que, por um lado, pressagia a miraculosa obra de Manuel Bandeira e sua inacreditável simplicidade em meio a uma lírica afeita ao preciosismo lexical e a uma sintaxe arrevezada e, por outro, parece “fácil”, preguiçosa demais, deparamos com os seguintes trechos, pertencentes a De manhã: “… Ver é o supremo bem. Surpreendo-me a cismar Se a alma será, talvez, uma função do olhar… É com os olhos que eu sinto, e compreendo –ou suponho. // A vida é para mim como a névoa de um sonho —Névoa confusa de um sonho material A que somente o olhar, de certo modo, e mal, Dá, com as formas e a cor, expressão e sentido… // …Sei que um beijo de amante é uma bem doce coisa: Mas no encanto do beijo esfaimado de amor Há muito da visão rósea de um lábio em flor. Ao contato da mão, ou num lírio, ou num verme, É a sugestão do olhar que domina a epiderme… // …No que o ouvido escuta —é o olhar que traduz: Para a imaginação do homem órfão da luz Que exprimiria o som —canto, sussurro, grito, Ribombo de trovão rolando no infinito… // …Nunca tivesse o olhar humano convivido Com a natureza; nunca houvesse o homem subido, Pelos olhos, suave escada de Jacó, Da Terra e de si mesmo, isto é, de lama e pó, Para a resplandecência astral e inacessível Do céu… // …Desconheces a luz que revela a beleza, A luz, que espiritualiza a Natureza, Que, num foco fugaz de espuma sem valor, Cria a mais deslumbrante apoteose da cor; Não aprendesse, amando a luz fecunda, o forte Horror da sombra, horror do vácuo, horror da morte. // Encerrado em si mesmo e chumbado no chão, Insulado na funda, imensa solidão Que em derredor do cego a cegueira dilata; O homem, órfão da luz, na Terra estreita e chata, Quase só conhecendo o Universo —através Do pedaço de solo em que pousasse os pés, // Dentro da escuridão de su´alma vazia Que humilde sonho de molusco sonharia?” - Esqueçamos os banais “beijo de amante”, “esfaimado de amor” e “visão rósea de um lábio em flor”. São poluentes agregados espuriamente à espuma das vagas dessa surpreendente e lúcida poética do olhar. É uma pena que esse exercício seja tão raro numa obra em que o dinamismo do verso e da rítmica poderia obedecer a um critério fenomenológico menos atrelado àquela “sensibilidade” que se espera do poeta, evitando a pobreza das seguintes anotações sobre a natureza: “Vai branca e fugidia, A nuvem pelo ar: Roça de leve a lua, Embebe-se em luar // E toda resplandece No brilho do luar, Mas pouco a pouco passa E perde-se no ar…” - E vai ficando pior, pelo entrecho sentimental: “Minha alma na tua alma —Nuvem que trouxe o vento— Passou por um instante, Roçou por um momento… // …Eu refleti apenas Um brilho que era teu; Passei, e tu ficaste, Ficou contigo o céu.” - E as célebres Cantigas Praianas vão na mesma toada de lirismo trivial e fácil, “natural”, com uma “natureza” que parece feita de palavras cristalizadas em puros rochedos de clichês: “Ouves acaso quando entardece Vago murmúrio que vem do mar, Vago murmúrio que mais parece Voz de uma prece Morrendo no ar? // Beijando a areia, batendo as fráguas, Choram as ondas; choram em vão: O inútil choro das tristes águas Enche de mágoas A solidão…” Vicente de Carvalho foi vítima da sua época, aquele período indeterminado, quase invertebrado, entre o Parnasianismo-Simbolismo e o Modernismo, etiquetado como o Pré-Modernismo. Ele escapou dos piores defeitos que assolam até a (grande) poesia de Olavo Bilac, aquele pedantismo horroroso, aqueles temas clássicos coligidos com informações de almanaque; como Afonso Schmidt, porém, nunca logrou uma voz poética inteiramente sua e parece ter se debatido entre destroços de tradições poéticas e vagas correntes intuitivas de uma “outra poesia”, que por vezes perpassa o seu lirismo e o faz surfar sobre águas menos rasas. Ele prova isso nos melhores trechos do seu A arte de amar, nas anotações sobre a natureza com uma clivagem mais irreverente, como nas Fantasias do luar (“O conjunto descosido/Da paisagem// A apagada fantasia/ Do colorido—parece /De um pintor que padecesse/ De miopia// Tudo, tudo quanto existe/ Extravaga, e se afigura/ Tomado de uma loucura/ Mansa e triste.”) ou no conceito freudiano de felicidade que aparece em Velho Tema: “Essa felicidade que supomos Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, // Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos” - E dessa forma o melhor Vicente de Carvalho escapa ao moribundo “lirismo de crepúsculo” que inunda versos como: “Tudo amortece; a tudo invade Uma fadiga, um desconforto… Como a infeliz serenidade Do embaciado olhar de um morto.” A Poesia de Vicente de Carvalho |
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